Relação entre História e Imagem através dos quadrinhos

A utilização de imagens para representar algo ou passar uma mensagem sempre esteve associada a historia da Humanidade.   A história dos quadrinhos remonta aos bänkelsängers, que no século XIV andavam pela atual Alemanha apresentando um “teatro” onde o apresentador contava a história apontando com uma varinha para um pano pintado com vários quadrinhos que montavam uma narrativa. (CAMPOS, 2015). E assim era apresentada uma narrativa para os analfabetos. Este detalhe é importante, pois muitos se utilizarão desta ferramenta para transmitir suas ideias ao público em geral. Assim, os quadrinhos se tornaram um potente instrumento de propaganda.

Um dos exemplos de propaganda está descrita na imagem 1. Este quadrinho é uma narrativa católica datada de cerca de 1630 na Alemanha, para ser lida em sentido horário, onde a Igreja Católica Romana conta a história de Martinho Lutero, descrito com o seguinte texto:

Martinho Lutero, doutor da impiedade, professor da vilania, vergonhoso apóstata, ladrão das noivas de Deus, e autor da confissão de Augsburgo.

No detalhe da imagem, abaixo da imagem de Lutero, vemos a seguinte descrição: “Lutero queima nas profundezas”.

Imagem 1: Propaganda católica contra Martinho Lutero. Fonte: CAMPOS, R. de. O nascimento das histórias em quadrinhos

Analisando a imagem como um todo e a mensagem passada na apresentação de Martinho Lutero, vemos que a propaganda representa a imagem que a Igreja Católica quer passar para a população, produzindo um significado. Sendo a representação uma parte essencial pelo qual os significados são produzidos e compartilhados entre os membros de uma cultura (HALL, 2016), na imagem 1 fica clara para a população a mensagem do que acontecerá com os indivíduos que forem a favor das ideias de Lutero, pois no quadrinho referente ao enterro deste, quem vai à frente do cortejo são os corvos e o próprio diabo, significando que são eles que irão abrir os caminhos de Lutero até o inferno.

Este tipo de propaganda se perpetua até os dias de hoje. Imagens de violência, desespero, distorções de personagens servem como um eficaz meio de propagação de estereótipos e preconceitos.

No século XIX, a Inglaterra vitoriana viu o surgimento das chamadas penny dreadfuls, folhetins sensacionalistas que tinham em suas páginas de rosto ilustrações dos mais diversos crimes. O Illustrated Police News, fundado em 1864, foi um destes periódicos que se popularizaram principalmente a partir dos crimes cometidos por Jack o Estripador. Este periódico também foi um dos responsáveis por disseminar a xenofobia, pois seus leitores eram em grande maioria trabalhadores sem instrução, que se influenciavam pelas imagens.

Imagem 2. Illustrated Police News, 14 de dezembro de 1878

Na imagem 2 vemos uma página principal do Illustrated Police News onde há uma narrativa de que um homem negro foi confundido com um gorila. Percebemos claramente a intenção de confundir a população quando se coloca o a personagem com roupas e cachimbo, mas com a aparência simiesca. Na imagem 3 temos o que foi chamado de Jack Estripador Negro. Há a representação dos mesmos traços simiescos, distorcida principalmente na região da mandíbula, que contrasta com os traços da sua vítima.

Imagem 3. Illustrated Police News 11 de outubro de 1890

Hall (2016) nos traz a ideia de um sistema de representação através da relação entre coisas, conceitos e signos, situando assim o cerne da produção do sentido de linguagem. Fica claro nas imagens 2 e 3 que o homem negro se difere do homem branco e se assemelha mais aos símios. Esta foi uma tese bastante representativa no estudo da craniometria ao final do século XIX . A representação do homem branco tem mais semelhança com a estatuária grega clássica, e o do homem negro se assemelha com os símios (GOULD, 1991)

Imagem 4. Representação dos chineses (detalhe do perfil) em A Liga Extraordinária 1898 pg.91

Nós podemos pensar que este tipo de representação é antiquada e que na atualidade não ocorre mais. Mas se prestarmos atenção aos detalhes das representações, temos um ciclo que se perpetua. Nós utilizamos diferentes formas de apropriação do passado no nosso cotidiano, sem que percebamos as diversas camadas sobre o objeto.Segundo BELTING (2012)  “Às vezes, o sentido de uma obra se deduz mais da época a que se reporta do que daquela em que surge”. (BELTING, 2012)

Vemos esta apropriação dos traços “do outro” na obra em quadrinhos A Liga Extraordinária, do roteirista Alan Moore e do artista Kevin O’Neill (1999).  A Liga Extraordinária é ambientada na Inglaterra vitoriana, sendo montada com várias personagens de livros da época.

O que nos chama atenção é a representação do que está fora dos padrões vitorianos de “pessoas de bem”, onde os traços voltam a ser distorcidos de forma a identificar que estes indivíduos estão excluídos da sociedade branca eurocêntrica.

Na imagem 4 percebemos os mesmos traços mandibulares proeminentes, representando a “ferocidade” dos indivíduos. Na imagem 5, embora seja uma representação da população em geral, percebemos os traços grosseiros dos homens (em especial o nariz), suas vestimentas e o mais inusitado – a expressão de espanto no olhar do ”cego”, nos induzindo a supor  a sua desonestidade.

Imagem 5. Detalhe população em A Liga Extraordinária 1898. p125

Nestas representações, temos um ciclo de “fazer história” com a percepção do outro. A uma história original somamos elementos que transformam esta outra história, mas com as mesmas bases. Os signos são sempre os mesmos, nos casos demonstrados aqui pelas imagens, o outro é algo a ser temido. Seja pela religião, pelos traços distorcidos, estas imagens nos “alertam” sobre o diferente e o lemos como perigo iminente.

Bibliografia

BELTING, H. O fim da história da arte. São Paulo: Cosac Naify, 2012.

CAMPOS, R. de. O nascimento das histórias em quadrinhos. São Paulo: Veneta, 2015(, físico).

GOULD, S. J. A falsa medida do homem. São Paulo: Martins Fontes, 1991.

HALL, S. Cultura e Representação. Rio de Janeiro: Editora PUC-Rio, 2016.

MOORE, A.; O´NEIL, K. A Liga Extraordinária 1898. Portugal: Devir Livraria, 1999. v. 1, .

SOUZA, J. A. Quando tempo e arte relacoes entre historia e imagem. [S. l.], [s. d.].

THOSS, J. From Penny Dreadful to Graphic Novel: Alan Moore and Kevin O’Neill’s Genealogy of Comics in The League of Extraordinary Gentlemen. Belphégor. Littérature populaire et culture médiatique, [S. l.],  n. 13–1, 9 maio 2015. Disponível em: http://journals.openedition.org/belphegor/624. Acesso em: 8 jun. 2021.

Apropriação de temas relacionados às Biociências nos Contos de Terror do Século XIX

Nos contos de terror que afloravam no século XIX, muitos tinham em suas narrativas criaturas monstruosas, deformadas e selvagens. Suas origens eram as mais diversas, desde grupos isolados de adoradores de deuses teriomórficos até pragas e pestes vindas de regiões não conquistadas pelo explorador europeu civilizado. O mundo civilizado se vê às voltas com lobisomens, vampiros, cadáveres, pestes entre outros, que são trazidos ao seu território por feitiçaria, mordidas, cientistas inescrupulosos ou espécies oriundas do “resto do mundo”.
Neste mesmo século, temos a consolidação de ciências como a fisiologia, a genética, a epidemiologia e demais campos onde a dimensão empírica era central na agenda de pesquisa.
Medição de ossos, cérebros, cor de olhos, entre outras características físicas eram fatores relevantes para estabelecer critérios de superioridade racial e de gênero por parte de alguns cientistas. Em alguns casos, ao retratar alguma etnia ou característica diferenciada, os cientistas modificavam sutilmente a ilustração do indivíduo, por exemplo, dando um contorno mais simiesco em homens negros. Estas duas narrativas se encontram na criação do estereótipo de que etnias diferentes do homem europeu, assim como regiões diferentes da Europa civilizada trazem em si a criminalidade, a violência e a doença. Este estereótipo se perpetua implicitamente na sociedade, e de forma sutil, estas ideias circulam entre a cultura e a ciência até os dias de hoje.

Na investigação científica, vários estudos foram realizados no campo das biociências. Josiah Nott & George Gliddon, cirurgião e egiptólogo respectivamente, em seu livros “Types of Mankind” (1854) e “Indigenous races of the earth”(1857), utilizam uma ilustração deformada dos crânios da etnia negra e do chimpanzé para justificar a inferioridade, pois esta lustração “comprovava” que os negros estavam em grau de inteligência entre os chimpanzés e os homens brancos. (citado por Gould, 2014).

GOULD, Stephen Jay. A falsa medida do homem.

Na área da epidemiologia, várias teorias foram verificadas. A peste negra chegou ao continente europeu através das caravanas comerciais que passavam pelo mar mediterrâneo originárias da China. O epidemiologista Jon Snow, entre o período de 1849 e 1854, comprovou que a epidemia de cólera ocorria devido a alimentos e água contaminada, em regiões insalubres, com fatores de risco como falta de saneamento, escassez de água e pobreza.
A partir do desenvolvimento científico, o homem é colocado como sujeito e objeto de conhecimento. Esta posição de sujeito e objeto difunde as informações pelo campo social , circulando os discursos científicos como estatutos de verdade.
Estes mesmos conhecimentos científicos, quando utilizados de forma a gerar préconceitos, podem incitar a formação de estereótipos. O preconceito não é inato, mas fruto da sociedade e de conflitos existentes. Foi Walter Lippmann, em 1922, que utilizou o termo “stereotypes” para indicar as “pictures in the head”, isto é, as representações mentais que cada um de nós projeta sobre a realidade para padronizá-la cognitivamente (Lippmann, 2004, citadopor Santoro, 2014).
E os estereótipos emergentes de etnias fora do eixo eurocêntrico ocidental, ou de populações oriundas da classe menos favorecidas dos centros europeus influenciaram fortemente diversos personagens de contos de terror.
Em 1890, Ruyard Kipling escreve em seu conto “A Marca da Besta”, a transformação de um homem inglês em lobisomem causado pela vingança do sacerdote de um templo em “Dharmsala, a leste de Suez”, que foi desonrado por este inglês bêbado. Neste conto,descreve-se como os “grandes macacos cinzentos da montanha” se comportam em seus rituais. Embora o mito do lobisomem exista desde a Grécia antiga, Kipling inseriu o componente étnico e religioso não judaico-cristão em seu conto de horror.

Cena do filme Nosferatu

Outro ente reconhecidamente sobrenatural é o vampiro. Embora a existência de um ser que suga a energia vital dos homens seja comum nos mitos e lendas antigas e medievais, ele foi difundido no século XIX com os panfletos de Varney o Vampiro (1845-1847) escritos por James Malcolm Rymer, e pelo romance “Dracula”, de Bram Stoker (1897). Neste livro, quando a personagem Jonathan Harker faz a viagem para a Transilvânia, em seu diário ele faz a seguinte observação: “as figuras mais esquisitas que avistamos foram os eslovacos, mais bárbaros que os demais (…) em uma peça teatral, seriam imediatamente identificados como a velha corja de bandidos orientais”.
No cinema expressionista alemão o vampiro foi imortalizado pelo filme Nosferatu (de 1922), quando o “monstro” migra para a Inglaterra em um caixão com terra não santificada em que foi sepultado, onde ele dorme diariamente na condição de morto-vivo, trazendo novamente a ameaça da peste negra para a Europa ocidental.
Como percebemos nestes breves exemplos, há componentes científico, étnico, geográfico e religioso incorporados na narrativa artística, formando o estereótipo do “mal”, onde a impureza e o perigo estão no que vem de fora dos centros urbanos europeus do séc. XIX.



CROCHIK, José Leon. Preconceito, Indivíduo e Sociedade. Temas em psicologia. No 3: 47 a 70. 1996.
BARATA, Rita Barradas. Epidemiologia e saber científico. Rev. Bras. Epidemiol. Vol. 1, Nº 1, 14-27. 1998
GOULD, Stephen Jay. A falsa medida do homem. – 3. ed. – São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2014.
HAINING, Peter. Histórias sobrenaturais de Ruyard Kipling. Editora Bertrand Brasil. 493p. 1996.
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STOKER , Bram . Dracula: o vampiro da noite; tradução Maria Luísa L. Bittencourt. 3. ed. São Paulo : Martin Claret, 418 p. 2002.