Quandos buscamos personalidades na história clássica, sempre vemos um espírito polímato, ou seja, que tem conhecimento sobre vários assuntos. Por exemplo, quando falamos de Tales de Mileto, estamos nos referindo a um filósofo que ao mesmo tempo era considerado astrônomo, matemático e engenheiro.
Em determinado momento da nossa história, nos períodos que rondam o Iluminismo, vimos surgir as ciências naturais como disciplina, e a partir de então não só temos as disciplinas – química, física, biologia, astronomia, entre outras – mas também as mais diversas especialidades – fisiologia, anatomia, morfologia, etc.
Mas estas especialidades não podem ser trabalhadas de forma estanque e individual. Como explicar pessoas que não aceitam a transfusão de sangue por motivos religiosos sem que a interface história da religião e história da ciência não seja explorada? E estamos falando de no mínimo dois campos do saber. Se inserir outras variáveis, como por exemplo que em alguns países, caso o doente esteja em risco de morte, o Estado suplanta a vontade do indivíduo e realiza a transfusão, entram em jogo questões politicas e sociais infinitas.
Percebe-se que todas as “caixinhas” do saber humano estão interligadas, como se fosse uma grande rede de comunicação das mais diversas possíveis. Olhar apenas para a história que interessa, é postular teorias contaminadas de erros
História do Conhecimento é algo sinérgico a partir da convergência entre vários campos do saber e suas informações existentes, em um processo multifacetado da história
E é sobre a História do Conhecimento que eu me debruço nos meus trabalhos. Nenhum fato se explica por si mesmo. Tudo é interligado, e o barato de trabalhar com a História do Conhecimento é descobrir estas interfaces fluidas e tentar entender fenômenos da sociedade que aparentemente parecem ser impossíveis de se explicar, como a teoria da terra plana em pleno século XXI e o movimento antivacina no meio de uma epidemia mortal.
Esse trabalho me fascina, me preenche, me faz sempre buscar mais. Mais histórias, mais conhecimentos, mais interconexões, na tentativa de entender um pouco mais esta nossa Humanidade.
As figuras dos grandes felinos sempre estiveram associadas à sucessão hereditária das elites e dos governos, às guerras, aos rituais de sacrifícios e à cosmogonia das culturas pré-colombianas. MIRCEA (citado por GARZA, 1984) nos diz que:
aprender a linguagem dos animais, e em primeiro lugar a das aves, equivale, em qualquer parte do mundo, a conhecer os segredos da natureza e, portanto, a poder profetizar. A linguagem dos pássaros se aprende pelo comum comendo carne de serpente e de outro animal tido como mágico. Estes animais podem revelar os segredos do futuro, porque são considerados como receptáculos das almas dos mortos ou as epifanias dos deuses. Aprender sua linguagem, imitar sua voz, equivale a poder comunicar-se com o além e com os céus. (tradução livre)
Assim sendo este estudo construirá uma cartografia destes felinos nas diferentes culturas mesoamericanas e andinas. Para demonstrar este percurso através de objetos e monumentos, trabalharemos com as representações dos felinos a partir dos Olmecas, no México até a construção inca de Cuzco, no Peru.
PASZTORY (2005a) nos diz que “A estética não reside no objeto e tampouco na mente do espectador, mas é uma complexa relação entre os dois. Reconstruir a mentalidade do espectador pré-colombiano, sem textos ou testemunhas, é praticamente impossível”. Assim, esta cartografia tem por objetivo demonstrar a importância dos grandes felinos nas mais diversas culturas pré-colombianas, elaborando hipóteses baseadas no pensamento ocidental para a representação dos mesmos nos mais diversos aspectos do cotidiano.
Este post irá abordar como estes animais foram sendo representados durante os séculos entre as várias culturas que existiam na região mesoamericana e andina, desde os primeiros habitantes do continente até o surgimento de Cuzco como capital do império inca; e como os grandes felinos se associaram ao sacrifício aos deuses, continuação das classes dominantes, má formação genética devido a casamentos entre a mesma linhagem sanguínea e à cosmogonia que os povos pré-colombianos fizeram parte.
Todas as civilizações têm a experiência do Sagrado. O Sagrado manifesta-se fora da rotina e do cotidiano. No Sagrado, a pedra ou a árvore deixam de ser apenas parte da natureza para se transmutarem no divino. É um modo peculiar de conhecimento do mundo e de situar-se nele (WILGES, 1982).
Estabelece-se então a cosmogonia deste povo, onde a ordem e a harmonia são instituídas pelas divindades. Para que o mundo continue neste padrão de organização é necessário que sejam criados mitos, ritos e cerimônias, para que o indivíduo possa lidar com o desconhecido e com o medo, tornando seu mundo mais seguro.
Figura 1. Máscara Olmeca de Jade
SANTOS JUNIOR (2009) afirma que “A concepção animista desse sistema ideológico apresenta como gérmen a tradição coletora e caçadora, baseada em crenças nos espíritos e forças transcendentes que regulavam as mudanças astronômicas, naturais e sociais, sobretudo os de subsistência de seu sistema nômade”.
Com processo de fixação das populações, há o desenvolvimento do conhecimento empírico sobre os ciclos solares / lunares, período de plantio e colheita, chuva e seca, entre outros. Começa a ser definido um novo conjunto de divindades e consequentemente de rituais. Neste processo vão sendo criadas novas visões do Sagrado a partir de novas demandas culturais.
Nas culturas pré-colombianas, neste processo há o surgimento de uma tríade de divindades que representam sua cosmogonia. Esta tríade é composta de uma ave (águia ou condor), um grande felino (jaguar ou puma) e a serpente. Neste contexto, os governantes e xamãs são os intermediários entre estes animais e o homem comum. Eles transitam entre os dois mundos trabalhando para a harmonia cosmogônica do povo.
Figura 2. homem com bebê jaguar
Se as aves representam a ligação com o “alto” e as serpentes com o mundo inferior, os grandes felinos são as divindades que habitam e protegem tudo o que ocorre no âmbito da terra, desde os ciclos das estações, as colheitas até a necessidade dos sacrifícios para que o cotidiano (colheitas prósperas, ausência de desastres naturais, entre outros).
Os animais representados nas suas formas antropomorfizadas, possuem atributos iconográficos que seguem um padrão, sendo estes: olhos com pupilas diferenciadas, sobrancelhas franzidas, narizes achatados, bocas com os lábios inferiores com uma concavidade para baixo. Segundo GHELLER (2013) “este universo iconográfico revela uma ideologia religiosa de deuses agressivos e intimidadores, satisfeitos mediante liturgias que demandavam grandes sacrifícios e oferendas” (tradução livre).
Na cultura mesoamericana encontra-se uma grande variedade de esculturas se reportando a uma cabeça antropomorfa com traços de jaguar. Estas figuras são denominadas “deus Jaguar”. Segundo CHOCANO (2007), este deus representa poderes sobrenaturais e controla os fenômenos naturais relacionados com as estações do ano. Partindo de sua figura naturalista o Jaguar tem uma transição que passa do animal propriamente dito à representação antropomórfica, com desenhos iconográficos repetitivos e uma maior elaboração da peça. Sua figura é inserida em vários contextos, tanto políticos quanto sociais e religiosos.
Figura 3. Corcundas Olmecas
Como vemos na figura 1 a máscara de jade Olmeca possui formas naturalistas. Segundo PASZTORY (2006a) a representação dos olmecas, é uma das mais naturalistas, tridimensionais e livres em movimento (1300-900 a.C.). Esta máscara possui um nariz muito característico de felino; sua boca entreaberta possui lábios grossos. Na parte interna da boca existe uma fenda como se fossem presas posteriores. A máscara possui olhos amendoados e detalhes na testa como se fosse uma fenda.
No sítio arqueológico de La Venta, há um altar em pedra basalto conhecida como “homem com bebê jaguar”, com medidas de 2m x 4m. Na figura 2 identificamos o bebê jaguar com características em comuns com outras representações existentes, como a posição do bebê jaguar no colo parece que este bebê possui má formação. Suas pernas não demonstram a existência de articulações que pudesse sustentar o corpo de forma ereta.
Estes traços de felino são recorrentes na cultura Olmeca. Uma das explicações existentes é a de consanguinidade genética. Os nobres casavam entre si, e esta prática era a causa de deformações genéticas, incluindo síndrome de Dowm e espinha e crânio bífido. Os bebês jaguar e alguns jovens retratados possuem as mesmas características: o corpo não está ereto e nem com uma simetria corporal dentro da normalidade. Podendo ser estas malformações associadas aos nobres, estes indivíduos foram retratados como seres mágicos. A figura 3 têm três jovens com deformações físicas, provavelmente – devido ao equilíbrio do corpo – com espinha bífida.
Figura 4. Cabeça Clava
Nas culturas andinas, estes animais também exercem grande influência. De grande complexidade cultural e este é período dos grandes centros cerimoniais, observações astronômicas e das forças ocultas da natureza como geradores e mantenedoras das ordem natural da terra. São construídos grandes centros cerimoniais, na qual o mais famoso é o Chavin de Huantar, na entrada da Cordilheira dos Andes.
Na figura 4 vemos monólitos escultóricos do sítio arqueológico de Chavin de Huantar que claramente é na forma de uma cabeça de felino com presas proeminentes esculpidas na rocha. A cultura Tiahuanaco, que se desenvolveu ente o período dos séculos IV a XIII d.C. deixou em seu legado o uso da madeira. Segundo a história desta cultura, não mais se apresenta o jaguar (gênero panthera) ou um felino de uma forma geral, mas a divindade é definida como o gênero puma. Embora os dois gêneros de grandes felinos guardem grandes semelhanças entre si, eles possuem habitats diferentes, sendo que o puma está relacionado com grandes altitudes, como as Cordilheiras dos Andes.
Em 15 de outubro de 2020, a Oficina de Comunicação e Imagem do governo peruano publicou sua mais nova descoberta no Mirador Natural do sítio arqueológico de Nazca y Palpa.
Figura 5. Geóglifo felino
A figura 5 é um geóglifo em forma de felino com o corpo de perfil e a cabeça de frente, medindo 37 metros de largura. Os arqueólogos dataram o geóglifo com uma idade aproximada de 100 – 200 a.C., do período Paraca tardio. Segundo a reportagem, “a representação de felinos deste tipo são frequentes na iconografia da cerâmica e dos têxteis da sociedade Paracas” (tradução livre). Este sítio é Patrimônio da Humanidade, tombado pela UNESCO em 1994.
A preocupação com as relações espaciais, padrões mentais e a falta de interesse pela visibilidade colocaram os famosos geoglifos de Nazca diretamente neste sistema andino. Um platô inteiro, despido exceto pelas linhas e figuras criadas com a disposição superficial de pedras em caminhos, foi uma enorme área sagrada. Visíveis somente a partir de colinas próximas ou a partir do ar, essas linhas foram provavelmente traçadas com cordas e constituíram, talvez, trajetos cerimoniais. Como não podia ser vista, a forma precisava ser imaginada e experimentada. (PASZTORY, 2005b)
Figura 5: Cuzco, a cidade-puma (Delgado, Dante, 2011)
As várias culturas pré-colombianas manifestavam sua forte ligação com os felinos em todas as formas de material. Apesar de todas estas peças demonstrarem esta relação dos felinos com o sagrado, com o conhecimento, geopolítica e religião, a mais impressionante demonstração da importância do felino é maior que uma escultura em pedra, um templo ou qualquer outro monumento. Esta relação sagrada tem seu ápice na arquitetura de uma cidade inteira, a cidade de Cuzco, no Peru, onde a cidade é o próprio felino (figura 6).
Segundo o DELGADO (2011): “Cuzco puma, tem plano arquitetônico animalístico zoomorfo astronômico. Traço urbano do desenho zoomorfo tem forma de felino. Topografia geográfica é acondicionada no corpo do felino. O puma é o mais avançado dos animais dos Andes.”
Os sítios arqueológicos ao redor da cidade tem um ponto radial inicial que parte do monumento Del Qorikancha – o Templo Sagrado do Sol – e formam um complexo arqueoastronômico com precisão incrível, seguindo os movimentos solares, lunares, solstícios e equinócios. Este ponto é o chamado “umbigo do mundo”, e de onde saem todas as linhas imaginárias que formam a geografia cósmica inca.
PASZTORY (2005b) afirma que “Santuários podiam ser templos, fontes, pedras, ou mesmo paisagens. A última visão de Cuzco a partir de um dado ponto era muitas vezes um santuário por si só. A ideia de que uma paisagem pudesse ser um santuário indica em que medida os conceitos mentais eram tão importantes quanto as coisas materiais para os andinos”. Nesta figura vemos que saem do umbigo do felino 42 linhas radiais que terminam nos sítios arqueológicos. Dentre estes sítios, o mais famoso e tombado pela UNESCO é o de Machu Picchu, construção religiosa cuja confluência radial passa pela cabeça do puma.
A relação mágica entre as culturas pré-colombianas e os felinos perdurou por cerca de 3000 anos, dos olmecas aos incas. Assim, há uma ligação intrínseca entre os felinos e o que ocorre no cotidiano das civilizações pré-colombianas. Esta sequência permeia o naturalismo na representação dos felinos em vários substratos, como rochas, máscaras, geóglifos, têxteis, entre outros.
Bibliografia Citada CAMPBELL, Joseph. As Máscaras de Deus. Mitologia Primitiva. Editora Palas Athena, São Paulo. 424p. 1992. CHOCANO, D. Jaguar e Ideologia en las Sociedades del Periodo Formativo: Pacopampa un caso en los Andes Centrales. Investigaciones Sociales, v. 11, n. 18, p. 139 – 177, 18 jun. 2007. Disponível em <https://revistasinvestigacion.unmsm.edu.pe/index.php/sociales/article/view/7140>. Acesso em 08 de fevereiro de 2021. DELGADO, D.G.S. : Arqueoastronomia inka – Cusco Cosmovisión y Arquitectura Mágica. Mundo Andino Editores. Lima, Peru. 270 p. 2011. GARZA, Mercedes (1984). los animales y lo divino. in: El Universo Sagrado de la Serpiente entre los Mayas, U.N.A.M. Centro de Estudios Mayas, México .Acesso em 09 de fevereiro de 2021. Disponível em <https://www.americaindigena.com/garza_animales.htm> GHELLER, Roberto (ed.): Antiguo Peru, Incas e preincas. Nancy Margarita Salazar Trujillo. Peru. 50p. 2013. PASZTORY, Esther(a). “Aesthetics and Pre-Columbian Art” In: Thinking with things. Toward a new vision of Art. Austin: University of Texas Press, 2005, pp. 189-196. PASZTORY, Esther (b). “Andean Aesthetics” In: Thinking with things. Toward a new vision of Art. Austin: University of Texas Press, 2005, pp. 197–207. SANTOS JUNIOR, Avelar. Cosmovisão e religiosidade andina: uma dinâmica histórica de encontros, desencontros e reencontros. Interações: Cultura e Comunidade [en linea] 2009, 4 [consulta: 08 de fevereiro de 2021] Disponivel em: <http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=313027312011> ISSN 1809-8479. SERRANO, Javier Urcid. El simbolismo del jaguar en el suroeste de Mesoamérica. Arqueología Mexicana núm. 72, pp. 40-45. 2007. [consulta: 08 de fevereiro de 2021]. Disponivel em : <http://arqueologiamexicana.mx/mexico-antiguo/el-simbolismo-deljaguar-en-el-suroeste-de-mesoamerica> WILGES, Irineu. Cultura religiosa. As religiões no mundo. Editora Vozes. 206p. 1994
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