Na Primavera do tempo

A primavera já chegou em setembro, mas esta mulher soberana em seu manto vermelho, caprichosa como só as mulheres podem ser, só quis chegar no início de outubro.

A Primavera (1482) – Sandro Botticelli

E neste lindo domingo, dia 02 de outubro, ela começou a se apresentar. Eu a esperei durante muito tempo, e finalmente este dia chegou.

Para honrar este encontro eu me vesti de branco. Mais do que qualquer cor, o branco é o somatório de todas elas. Meu branco representou com orgulho o arco-íris dos meus irmãos LGBTQIA+, e celebrou a liberdade do Espírito para manifestar em seus corpos o que eles são. A cor representou todos os meus irmãos pretos, pardos, indígenas, asiáticos, brancos. Todas as etnias estavam em minha roupa branca, mesmo porque daqui a pouco, estas cores se misturarão no mesmo solo que há de reciclar nossos corpos.

Ao olhar pela minha janela, percebi pelo balançar das folhas que ainda corria um vento frio, pois a primavera chega com passos firmes mas delicados.

Assim achei por bem me proteger das ruas ainda cinzentas e frias com a minha echarpe vermelha, minha companheira de tantos momentos. Ao passá-la ao redor do meu pescoço, percebi que ainda faltava algo para honrar a chegada da nova estação. E aquele batom vermelho completou meu sorriso de alegria.

Flor de Pascoa (1873) Marianne North.

E assim fui ao encontro da nova estação, com passos firmes, esperança no coração, fé no futuro e na certeza que há uma estrela a nos guiar.

Afinal, por mais que seja rigoroso o inverno, jamais se pode deter a chegada da primavera

Me deixe sozinha

Adoro dias chuvosos. Combinam com uma das mais belas Rosângelas que habitam dentro de mim. Gosto de passear displicentemente pelas ruas do centro da cidade com meu echarpe vermelho, olhando para aquelas belas construções neoclássicas que povoaram a arquitetura do século XIX. E para estas caminhadas, nada melhor que a companhia das musas que guardam o Teatro Municipal, me auxiliando a passar pelas folhas de acanto que sustentam as grandes colunas de imponentes prédios.

Mas infelizmente nem tudo dá uma bela foto que valha a pena colocar nas redes sociais. Em uma sociedade como a nossa, prazeres simples como passear nas ruas para uma mulher sozinha se torna uma batalha.

Ouvir cantadas velhas e machistas, ser a nora perfeita para sogras imaginárias, se sentir um pedaço de carne ambulante, não poder sequer rir ao lembrar de um fato engraçado para que o indivíduo não ache que voce está “dando mole”. Meu Deus! Me tiraram o direito ao riso frouxo!

Suzana e os Anciãos (1610) – Artemisia Gentileschi

Como sou insistente em meu passeio pelas ruas estreitas do centro, desviando de carantonhas e sons de gralhas que insistem em me perturbar a viagem, as musas acham por bem me confiar a Baudelaire. Ele, como um autêntico flâneur, me guia até um antigo café, com seu piso do século XIX ainda intacto, para que eu pudesse, ao beber lentamente minha xícara de capuccino, me transportar para minhas outras vidas, me desligasse da contemporaneidade enloquecedora e barulhenta e aproveitasse alguns momentos de profundo prazer de minha própria companhia.

E passo alguns belos momentos pensando, devaneando, sorrindo de alegrias passadas e presentes, e para pessoas queridas que desfilam pelos olhos da minha alma. Neste momento não lembro onde o corpo está, mas alma certamente está no paraíso.

Senti o cheiro de feijão da minha mãe, comi o bolinho de chuva com canela e tomei o café que ela tinha acabado de passar. Até dancei soltinho com meu pai e seu sapato bicolor na sala.

Terraço do Café à Noite (1888) – Vincent Van Gogh

De repente, escuto um “- senhora?” muito ao longe. Deixei meu bolinho de chuva no prato, me despedi de meus pais e voltei para a cafeteria que estava.

Ao sair do meu paraíso particular, a garçonete, muito envergonhada, me diz que um determinado senhor me viu muito tempo sozinha e por isso se dispôs a me fazer companhia, a se sentar em minha mesa para eu não ficar sozinha.

Ainda aérea pelo fuso horário entre o meu mundo mágico e o café onde eu estava sentada, me perguntei “eu? sozinha?”. Após alguns instantes agradeci mas recusei a companhia pois eu queria estar sozinha, foi para isso que saí de casa aquele dia, para estar comigo. Ao passar por mim, o educado cavalheiro balbuciou pelo canto da boca a real ideia do que ele achava que eu era.

Mas não me dou por vencida. Fico até o final do que eu tinha programado para o meu dia. Ajeito meu echarpe vermelho e retoco meu batom. E enquanto faço isso, reforço a minha disposição de lutar com unhas pintadas e um belo sorriso contra essa sociedade tão misógina, que sequer nos deixa sair às ruas em paz – e sozinha.