Adoro dias chuvosos. Combinam com uma das mais belas Rosângelas que habitam dentro de mim. Gosto de passear displicentemente pelas ruas do centro da cidade com meu echarpe vermelho, olhando para aquelas belas construções neoclássicas que povoaram a arquitetura do século XIX. E para estas caminhadas, nada melhor que a companhia das musas que guardam o Teatro Municipal, me auxiliando a passar pelas folhas de acanto que sustentam as grandes colunas de imponentes prédios.

Mas infelizmente nem tudo dá uma bela foto que valha a pena colocar nas redes sociais. Em uma sociedade como a nossa, prazeres simples como passear nas ruas para uma mulher sozinha se torna uma batalha.
Ouvir cantadas velhas e machistas, ser a nora perfeita para sogras imaginárias, se sentir um pedaço de carne ambulante, não poder sequer rir ao lembrar de um fato engraçado para que o indivíduo não ache que voce está “dando mole”. Meu Deus! Me tiraram o direito ao riso frouxo!
Suzana e os Anciãos (1610) – Artemisia Gentileschi
Como sou insistente em meu passeio pelas ruas estreitas do centro, desviando de carantonhas e sons de gralhas que insistem em me perturbar a viagem, as musas acham por bem me confiar a Baudelaire. Ele, como um autêntico flâneur, me guia até um antigo café, com seu piso do século XIX ainda intacto, para que eu pudesse, ao beber lentamente minha xícara de capuccino, me transportar para minhas outras vidas, me desligasse da contemporaneidade enloquecedora e barulhenta e aproveitasse alguns momentos de profundo prazer de minha própria companhia.
E passo alguns belos momentos pensando, devaneando, sorrindo de alegrias passadas e presentes, e para pessoas queridas que desfilam pelos olhos da minha alma. Neste momento não lembro onde o corpo está, mas alma certamente está no paraíso.
Senti o cheiro de feijão da minha mãe, comi o bolinho de chuva com canela e tomei o café que ela tinha acabado de passar. Até dancei soltinho com meu pai e seu sapato bicolor na sala.
Terraço do Café à Noite (1888) – Vincent Van Gogh

De repente, escuto um “- senhora?” muito ao longe. Deixei meu bolinho de chuva no prato, me despedi de meus pais e voltei para a cafeteria que estava.
Ao sair do meu paraíso particular, a garçonete, muito envergonhada, me diz que um determinado senhor me viu muito tempo sozinha e por isso se dispôs a me fazer companhia, a se sentar em minha mesa para eu não ficar sozinha.
Ainda aérea pelo fuso horário entre o meu mundo mágico e o café onde eu estava sentada, me perguntei “eu? sozinha?”. Após alguns instantes agradeci mas recusei a companhia pois eu queria estar sozinha, foi para isso que saí de casa aquele dia, para estar comigo. Ao passar por mim, o educado cavalheiro balbuciou pelo canto da boca a real ideia do que ele achava que eu era.
Mas não me dou por vencida. Fico até o final do que eu tinha programado para o meu dia. Ajeito meu echarpe vermelho e retoco meu batom. E enquanto faço isso, reforço a minha disposição de lutar com unhas pintadas e um belo sorriso contra essa sociedade tão misógina, que sequer nos deixa sair às ruas em paz – e sozinha.
Amada Rosangela meu momento é um tantinho diferente do teu. Eu sei muito bém que precisamos muitas pedir um tempo para nosso mundo interior. Mas no meu momento atual estou “com fome de mundo”.
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