Gustave Doré e Cammile Flammarion

Para quem gosta de artes visuais, não tem como não se encantar com as ilustrações de Gustave Doré.

Este ilustrador, desenhista e pintor do séxulo XIX nasceu em Estrasburgo em 1832 e morreu em Paris em 1883. Extremamente bem sucedido, ilustrou os livros dos maiores escritores da história como Balzac, Cervantes, Milton, e tantos outros.

Mas seu conjunto de ilustrações mais famosa certamente é Divina Comédia, escrita pelo poeta italiandor Dante Alighieri (1265-1321), escrita no século XIV e dividida em três partes: Inferno, Purgatório e Paraíso. É um livro de poemas maravilhoso que narra a viagem do próprio Dante pelas três esferas da mitologia católica.

(ilustração: Caronte, o barqueiro do inferno, da divina comédia (Inferno) por Dante Alighieri (1265-1321) gravado por Stephane Pannemaker (1847-1930) c.1868)

No inferno e no purgatório, Dante tem a companhia do poeta grego Virgílio (70 a 19 a.C.), mas como Virgílio não era batizado, não pôde entrar no Paraíso dos venturosos. Nesta tarefa, a grande amada de Dante – Beatriz – o acompanhou até o final.

Mas este post não é sobre A Divina Comédia nem sobre Caronte…

Trabalhando como voluntária em uma biblioteca, na parte de obras raras, eu me vi frente a frente com uma ilustração de Gustave Doré até então desconhecida pelas pinacotecas e que eu não tinha encontrado nos arquivos da internet (se alguém já viu, pelo amor das musas, me fala!)

Encontrei esta ilustração de Doré em um livro de Cammile Flammarion, intitulado “Récits De L’infini-Lumen: Histoire D’une Comète. Dans L’infini”, no Brasil traduzido como Narrações do Infinito.

Esta imagem (muito mal fotografada pelo meu celular) é a capa deste livro. Esta edição é a 5a edição da Livraria Ernest Flammarion.

Cammile Flammarion foi um reconhecido astrônomo francês (1842-1925). Fundador da Société Astronomique de France, Cammile foi um grande expoente da Doutrina Espírita codificada por Allan Kardec. Além disso, Flammarion foi responsável pela popularização da astronomia para a sociedade civil.

Com certeza, ao trabalhar com este livro, minha emoção veio à tona, pois manusear um livro de mais de um século já é emocionante por sí só, ainda mais mas com uma ilustração inédita de Doré, que imortalizou tantos livros durante sua vida.

Confesso que nunca imaginaria tal feito, um livro unindo duas personalidades que me representam na minha história de vida. Cammile Flammarion representando minha porção historiadora da ciência e Gustave Doré representando minha porção historiadora da arte. Uma emoção única, com certeza!

Aparecendo novidades no meu cantinho da biblioteca de obras raras, com certeza venho correndo fazer uma resenha com vocês!

De Medusa só me interessa o monstro

Medusa era uma jovem linda, filha de Fórcis e Ceto. Seu pecado era gostar de se cuidar. Além da beleza,que já nascera com ela, o cuidado consigo mesma era algo que a fazia mais radiante.

Medusa era vaidosa, mas mesmo assim, a jovem era a sacerdotisa virgem e fiel de sua deusa Atena. Apesar de todos os cuidados com pele, cabelo e das roupas mais ousadas, Medusa nunca deixou de seguir o princípio da castidade de Atena.

Mas nesse mundo mitológico nada é perfeito e os defeitos humanos habitam em todos os deuses. E assim os irmãos Poseidon e Atena iniciam uma guerra para decidir qual seria capital da Grécia.

Atena sai vitoriosa mas isso desperta uma fúria em seu irmão, que era um tanto quanto irracional.

(Reconstituição moderna do frontão oeste do Partenon. Museu da Acrópole de Atenas)

E para se vingar de sua irmã Atena, Poseidon, sem nenhum constrangimento, decidiu abusar sexualmente de uma das suas devotas mais fieis, a Medusa “que sofreu o funesto” segundo Hesíodo. Embora tivesse barbas brancas, Hesíodo em sua Teogonia o chama caprichosamente de Crina-preta.

Rapidamente a notícia que Medusa se deitara com Poseidon no macio prado entre flores de primavera se espalha entre todos. Embora a jovem sacerdotisa afirme angustiada que fora vítima de estupro, seria mais cômodo acreditar em um deus de barbas brancas do que em uma jovem bonita e vaidosa.

E não é de se espantar que a maioria das pessoas culpavam Medusa, dizendo que ela tinha se aproveitado da situação. Apesar disso, a fé da jovem não se abalou e ela continuou fiel a seus princípios e indo todos os dias ao templo da deusa.

Ao saber disso, Atena foi tirar satisfação com Medusa e a serva disse que havia sido vítima de um estupro. Se fosse qualquer outra serva sua, Atena havia acreditado e a defendido. Porém, como era Medusa, a deusa não se convenceu de suas explicações. Logo Medusa, tão bonita e vaidosa? A que se dedicava a tantos cuidados consigo mesma?

E por não acreditar – afinal era Medusa e não bastava sua fidelidade e sua dedicação para ter um voto de confiança – como castigo transformou sua aparência em um ser repugnante e seu belos cabelos em cobras, lançando a maldição que qualquer pessoa que olhasse para ela seria transformada em pedra, selando seu destino de solidão.

A partir deste momento, há um apagamento do passado de alegrias e de dor, de memórias e lembranças para que apenas o monstro sobreviva.

E esse monstro é um troféu, como todos aqueles que não pertencem ao status de normalidade.

Cabe a Perseu apenas a morte de Medusa. Perseu, um semideus, filho de um abuso em forma de ouro, só quer a vitória, pois um dia lhe disseram que tudo que ele quisesse ele poderia conquistar.

Para ele pouco importa quem é o monstro, ou se é um monstro, só lhe importa a vitória.

Medusa (1597) de Caravaggio

A vida de Medusa agora não vale nada, se ela é um monstro vivo, se torna um troféu de grande valor morta.

E quando Perseu a persegue e a encontra para matar, ele lhe diz assoviando: – “você é um monstro.”

E Medusa gargalha e lhe responde: “- melhor ser um monstro do que um deus arrogante”

A Morte de Medusa (1882) Edward Burne Jones