“Você é uma pessoa totalmente indelicada. Você tira seu aviso de leitura do whatsapp para a gente não saber se você leu ou não”
“Como assim você não gosta de áudio? se fosse para digitar eu mandava um email”
Te mandei a mensagem às 5 da tarde e você só me responde às 8 da noite?
Foi assim o início de um áudio de mais de 4 minutos que ontem eu recebi de uma pessoa.
Confesso que após o impacto inicial desta abordagem desastrosa, comecei a me lembrar de um dos movimentos artísticos que menos tenho apreço – o futurismo.
Embora tenha este nome, o futurismo foi um movimento das vanguardas artísticas do início do século XX, mais fortemente na Itália, com a publicação em 1909 do manifesto futurista de Philippo Marinetti. Eles estavam “embalados” por toda o frisson das invenções e descobertas realizadas nos séculos anteriores, em especial com os desdobramentos da 1a Revolução Industrial, causando grandes mudanças na sociedade.
Dinamismo de um cachorro na coleira – Giacomo Balla (1912). óleo sobre tela
Este movimento caracterizou-se basicamente por uma agressiva valorização da tecnologia, da velocidade e da vida urbana. Os futuristas queriam destruir tudo o que era “velho”. Isso tudo seria até mesmo interessante – romper com grilhões do passado – se não fosse pela maneira imposta.
Nós destruiremos os museus, bibliotecas, academias de todo tipo, lutaremos contra o moralismo, feminismo, toda cobardice oportunista ou utilitária.
Este trecho do Manifesto Futurista de Marinetti, nos dá indícios do que se propõe este movimento. Em outro trecho é dito “nós glorificaremos a guerra”. E não é segredo algum que este movimento justificava a violência pelo militarismo, e se tornou totalmente identificada com o fascismo.
E porque eu me lembrei do futurismo na mensagem do whatsapp?
A velocidade futurista esbarra com a sede de controle, e mais… conversa fluidamente com a volta de políticas e ações de um direita intransigente.
Quando o indivíduo reclama que tiramos o sinal de leitura do aplicativo, indiretamente ele nos avisa que sua postura é de controle do outro. Quando ele se aborrece porque não gostamos de áudio, ele está nos avisando que não há espaço para que façamos o que é de nossa vontade. Quando a pessoa reclama que não respondeu rapidamente, ela quer tirar de nós o nosso próprio tempo.
Isto nos leva ao entendimento que o individuo quer ter o nosso controle, nossa vontade e nosso tempo e se utiliza de ferramentas tecnológicas para isso.
Isso ficaria apenas no campo da divagação sobre relações interpessoais, se não tivéssemos em nossa sociedade o fantasma do fascismo revisitado, sob roupas de cuidado e proteção, nos mesmos moldes do início do século XX.
Afinal, em ano de eleições, nada mais futurista que incitar a guerra nas redes sociais e aplicativos – tudo para o bem do que eles consideram Nação.
A utilização de imagens para representar algo ou passar uma mensagem sempre esteve associada a historia da Humanidade. A história dos quadrinhos remonta aos bänkelsängers, que no século XIV andavam pela atual Alemanha apresentando um “teatro” onde o apresentador contava a história apontando com uma varinha para um pano pintado com vários quadrinhos que montavam uma narrativa. (CAMPOS, 2015). E assim era apresentada uma narrativa para os analfabetos. Este detalhe é importante, pois muitos se utilizarão desta ferramenta para transmitir suas ideias ao público em geral. Assim, os quadrinhos se tornaram um potente instrumento de propaganda.
Um dos exemplos de propaganda está descrita na imagem 1. Este quadrinho é uma narrativa católica datada de cerca de 1630 na Alemanha, para ser lida em sentido horário, onde a Igreja Católica Romana conta a história de Martinho Lutero, descrito com o seguinte texto:
Martinho Lutero, doutor da impiedade, professor da vilania, vergonhoso apóstata, ladrão das noivas de Deus, e autor da confissão de Augsburgo.
No detalhe da imagem, abaixo da imagem de Lutero, vemos a seguinte descrição: “Lutero queima nas profundezas”.
Imagem 1: Propaganda católica contra Martinho Lutero. Fonte: CAMPOS, R. de. O nascimento das histórias em quadrinhos
Analisando a imagem como um todo e a mensagem passada na apresentação de Martinho Lutero, vemos que a propaganda representa a imagem que a Igreja Católica quer passar para a população, produzindo um significado. Sendo a representação uma parte essencial pelo qual os significados são produzidos e compartilhados entre os membros de uma cultura (HALL, 2016), na imagem 1 fica clara para a população a mensagem do que acontecerá com os indivíduos que forem a favor das ideias de Lutero, pois no quadrinho referente ao enterro deste, quem vai à frente do cortejo são os corvos e o próprio diabo, significando que são eles que irão abrir os caminhos de Lutero até o inferno.
Este tipo de propaganda se perpetua até os dias de hoje. Imagens de violência, desespero, distorções de personagens servem como um eficaz meio de propagação de estereótipos e preconceitos.
No século XIX, a Inglaterra vitoriana viu o surgimento das chamadas penny dreadfuls, folhetins sensacionalistas que tinham em suas páginas de rosto ilustrações dos mais diversos crimes. O Illustrated Police News, fundado em 1864, foi um destes periódicos que se popularizaram principalmente a partir dos crimes cometidos por Jack o Estripador. Este periódico também foi um dos responsáveis por disseminar a xenofobia, pois seus leitores eram em grande maioria trabalhadores sem instrução, que se influenciavam pelas imagens.
Imagem 2. Illustrated Police News, 14 de dezembro de 1878
Na imagem 2 vemos uma página principal do Illustrated Police News onde há uma narrativa de que um homem negro foi confundido com um gorila. Percebemos claramente a intenção de confundir a população quando se coloca o a personagem com roupas e cachimbo, mas com a aparência simiesca. Na imagem 3 temos o que foi chamado de Jack Estripador Negro. Há a representação dos mesmos traços simiescos, distorcida principalmente na região da mandíbula, que contrasta com os traços da sua vítima.
Imagem 3. Illustrated Police News 11 de outubro de 1890
Hall (2016) nos traz a ideia de um sistema de representação através da relação entre coisas, conceitos e signos, situando assim o cerne da produção do sentido de linguagem. Fica claro nas imagens 2 e 3 que o homem negro se difere do homem branco e se assemelha mais aos símios. Esta foi uma tese bastante representativa no estudo da craniometria ao final do século XIX . A representação do homem branco tem mais semelhança com a estatuária grega clássica, e o do homem negro se assemelha com os símios (GOULD, 1991)
Imagem 4. Representação dos chineses (detalhe do perfil) em A Liga Extraordinária 1898 pg.91
Nós podemos pensar que este tipo de representação é antiquada e que na atualidade não ocorre mais. Mas se prestarmos atenção aos detalhes das representações, temos um ciclo que se perpetua. Nós utilizamos diferentes formas de apropriação do passado no nosso cotidiano, sem que percebamos as diversas camadas sobre o objeto.Segundo BELTING (2012) “Às vezes, o sentido de uma obra se deduz mais da época a que se reporta do que daquela em que surge”. (BELTING, 2012)
Vemos esta apropriação dos traços “do outro” na obra em quadrinhos A Liga Extraordinária, do roteirista Alan Moore e do artista Kevin O’Neill (1999). A Liga Extraordinária é ambientada na Inglaterra vitoriana, sendo montada com várias personagens de livros da época.
O que nos chama atenção é a representação do que está fora dos padrões vitorianos de “pessoas de bem”, onde os traços voltam a ser distorcidos de forma a identificar que estes indivíduos estão excluídos da sociedade branca eurocêntrica.
Na imagem 4 percebemos os mesmos traços mandibulares proeminentes, representando a “ferocidade” dos indivíduos. Na imagem 5, embora seja uma representação da população em geral, percebemos os traços grosseiros dos homens (em especial o nariz), suas vestimentas e o mais inusitado – a expressão de espanto no olhar do ”cego”, nos induzindo a supor a sua desonestidade.
Imagem 5. Detalhe população em A Liga Extraordinária 1898. p125
Nestas representações, temos um ciclo de “fazer história” com a percepção do outro. A uma história original somamos elementos que transformam esta outra história, mas com as mesmas bases. Os signos são sempre os mesmos, nos casos demonstrados aqui pelas imagens, o outro é algo a ser temido. Seja pela religião, pelos traços distorcidos, estas imagens nos “alertam” sobre o diferente e o lemos como perigo iminente.
Bibliografia
BELTING, H. O fim da história da arte. São Paulo: Cosac Naify, 2012.
CAMPOS, R. de. O nascimento das histórias em quadrinhos. São Paulo: Veneta, 2015(, físico).
GOULD, S. J. A falsa medida do homem. São Paulo: Martins Fontes, 1991.
HALL, S. Cultura e Representação. Rio de Janeiro: Editora PUC-Rio, 2016.
MOORE, A.; O´NEIL, K. A Liga Extraordinária 1898. Portugal: Devir Livraria, 1999. v. 1, .
SOUZA, J. A. Quando tempo e arte relacoes entre historia e imagem. [S. l.], [s. d.].
THOSS, J. From Penny Dreadful to Graphic Novel: Alan Moore and Kevin O’Neill’s Genealogy of Comics in The League of Extraordinary Gentlemen. Belphégor. Littérature populaire et culture médiatique, [S. l.], n. 13–1, 9 maio 2015. Disponível em: http://journals.openedition.org/belphegor/624. Acesso em: 8 jun. 2021.
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