Era apenas mais uma noite de terça-feira. Daquelas chuvosas com o barulho gostoso das grossas gotas de chuva que anunciavam uma noite fria.
O som ritmado das gotas batendo nas telhas da varanda agia como se fosse uma música mágica, magnética, tal qual um blues dos anos 50.
A saudade de um tempo de corpos dançando como se fosse um só, da taça de Pinot Noir instigando aquela gargalhada gostosa em cada rodopio, como se a pista de dança fosse o vinil que toca na vitrola
De repente aquele blues rasgado com o som do chiado da agulha, desmaterializou todas as dimensões que compõem o corpo humano e fez do ser uma onda a vagar por todo o universo.
E essa onda foi em todos os cantos, em todos os lugares que tivesse uma lembrança de sons, gostos, cores e amores.
Depois a onda rodopiou imitando o movimento circular de uma galáxia, se tornando uma jovem debutante em sua primeira valsa.
O tempo não existia mais, podia ser tanto a eternidade divina quanto os breves minutos de uma faixa do vinil.
De repente esse movimento frenético foi perdendo força, acalmando a onda que começava a trocar a velocidade pela cadência e em poucos minutos a forma humana foi se restabelecendo
E assim, ao terminar a música, o devaneio de desbravar o universo e seus movimentos foi substituído por um desejo incontrolável de mais um gole de Pinot Noir, que rodava displicentemente na taça enquanto a chuva caía.
Medusa era uma jovem linda, filha de Fórcis e Ceto. Seu pecado era gostar de se cuidar. Além da beleza,que já nascera com ela, o cuidado consigo mesma era algo que a fazia mais radiante.
Medusa era vaidosa, mas mesmo assim, a jovem era a sacerdotisa virgem e fiel de sua deusa Atena. Apesar de todos os cuidados com pele, cabelo e das roupas mais ousadas, Medusa nunca deixou de seguir o princípio da castidade de Atena.
Mas nesse mundo mitológico nada é perfeito e os defeitos humanos habitam em todos os deuses. E assim os irmãos Poseidon e Atena iniciam uma guerra para decidir qual seria capital da Grécia.
Atena sai vitoriosa mas isso desperta uma fúria em seu irmão, que era um tanto quanto irracional.
(Reconstituição moderna do frontão oeste do Partenon. Museu da Acrópole de Atenas)
E para se vingar de sua irmã Atena, Poseidon, sem nenhum constrangimento, decidiu abusar sexualmente de uma das suas devotas mais fieis, a Medusa “que sofreu o funesto” segundo Hesíodo. Embora tivesse barbas brancas, Hesíodo em sua Teogonia o chama caprichosamente de Crina-preta.
Rapidamente a notícia que Medusa se deitara com Poseidon no macio prado entre flores de primavera se espalha entre todos. Embora a jovem sacerdotisa afirme angustiada que fora vítima de estupro, seria mais cômodo acreditar em um deus de barbas brancas do que em uma jovem bonita e vaidosa.
E não é de se espantar que a maioria das pessoas culpavam Medusa, dizendo que ela tinha se aproveitado da situação. Apesar disso, a fé da jovem não se abalou e ela continuou fiel a seus princípios e indo todos os dias ao templo da deusa.
Ao saber disso, Atena foi tirar satisfação com Medusa e a serva disse que havia sido vítima de um estupro. Se fosse qualquer outra serva sua, Atena havia acreditado e a defendido. Porém, como era Medusa, a deusa não se convenceu de suas explicações. Logo Medusa, tão bonita e vaidosa? A que se dedicava a tantos cuidados consigo mesma?
E por não acreditar – afinal era Medusa e não bastava sua fidelidade e sua dedicação para ter um voto de confiança – como castigo transformou sua aparência em um ser repugnante e seu belos cabelos em cobras, lançando a maldição que qualquer pessoa que olhasse para ela seria transformada em pedra, selando seu destino de solidão.
A partir deste momento, há um apagamento do passado de alegrias e de dor, de memórias e lembranças para que apenas o monstro sobreviva.
E esse monstro é um troféu, como todos aqueles que não pertencem ao status de normalidade.
Cabe a Perseu apenas a morte de Medusa. Perseu, um semideus, filho de um abuso em forma de ouro, só quer a vitória, pois um dia lhe disseram que tudo que ele quisesse ele poderia conquistar.
Para ele pouco importa quem é o monstro, ou se é um monstro, só lhe importa a vitória.
Medusa (1597) de Caravaggio
A vida de Medusa agora não vale nada, se ela é um monstro vivo, se torna um troféu de grande valor morta.
E quando Perseu a persegue e a encontra para matar, ele lhe diz assoviando: – “você é um monstro.”
E Medusa gargalha e lhe responde: “- melhor ser um monstro do que um deus arrogante”
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