Continuando nosso pensamento sobre a Nação Saudável, neste Dia Internacional da Mulher, um questionamento deve ser feito: neste projeto de Nação, como identificar qual mulher seria a mãe ideal?
No quadro “A redenção de Cam”, vemos o branqueamento da raça através da mulher mestiça. Como era esta mulher mestiça? Boa mãe? Dócil?
Na discussão da época sobre o resultado da miscigenação, se gerava ou não seres degenerados, exemplificado nas teorias de Roquette-Pinto e Renato Kehl, mesmo tendo o Brasil uma postura mais neolamarckista, onde o homem sofre interferência do meio, não pode ser esquecida a questão genética da formação dos corpos. Uma mestiça seria uma mãe ideal? A negra seria uma mãe ideal? A branca seria a mãe ideal?
Não apenas a etnia, mas outras características foram importantes para a consolidação, não apenas do perfil materno ideal, mas sua posição na sociedade. Características como idade e geração, sexualidade, localização no globo ou algum tipo de deficiência física foram levadas em conta, no intuito de estabelecer alternativas à composição da sociedade. (BIROLI; MIGUEL, 2015)
Se há uma tese de que o embranquecimento da raça é uma necessidade para criar um projeto de Nação, temos que analisar qual seria o corpo feminino ideal. E um território nebuloso se apresenta neste momento. Questões morais, sociais, econômicos, religiosas se travestem de ciência e começam a determinar quais seriam os caminhos a serem percorridos em busca da raça perfeita.
Um dos primeiros parâmetros a serem analisados é a genética mendeliana, onde a transmissão hereditária toma um papel absoluto no embranquecimento. Biologicamente, qual seria o corpo feminino ideal para que esse processo se desse de uma forma mais rápida, em cem anos, como nos diz Lacerda? Partindo deste pressuposto, e da estimativa de vida da população brasileira, para se alcançar o objetivo desejado o embranquecimento já deveria partir da mulher mestiça ou branca.
E o que fazer com os corpos negros e indígenas? Em uma eugenia neolamarckista, cujo processo eugênico passava pelas condições sociais, educacionais e médico-sanitaristas, esses corpos seriam deixados de lado em detrimento dos corpos mestiços ou brancos?
Enquanto a “mão católica” influenciava temas como educação sexual, controle de natalidade e controle matrimonial, e os cientistas brasileiros pregavam ações do meio para interferir no indivíduo onde estavam e com qual intensidade estavam estas ações para os ex-escravizados em seus guetos, sua cultura, sua religião?
Após a exposição da questão genética, e levando em conta a influência o aspecto moral e social do meio no indivíduo, qual a “mãe ideal” para gestar esta nova nação?
No fim do século XIX, começo do século XX, há um debate sobre os papéis de gênero que se encaixam nesta sociedade moralmente adequada, onde o homem era “uma inteligência servida de órgãos e a mulher um útero servido de órgãos”. Em sua tese, Egas Muniz prega que “a mulher é essencialmente mãe” (TOLEDO; VIMIEIRO, 2018). E se a mulher é essencialmente mãe, pelos valores morais e sociais da época, o que fazer com as mulheres que não estão se encaixam neste padrão?
Para Egas Moniz, a única finalidade para a vida sexual seria a reprodução, em uma visão judaico-cristã, assim teoria procurava ordenar e determinar condutas para os dois sexos, com ênfase em prescrições para a sexualidade feminina e corroborando com um modelo de diferença sexual.
O corpo feminino diferia do corpo masculino, pois apresentava uma instabilidade e esta instabilidade se refletiria em patologia. Ciclos fisiológicos como a menarca, ciclo menstrual e menopausa tinham como consequência o descontrole de comportamento, nervosismo, irritabilidade. E essas consequências – absolutamente normal fisiologicamente – são desejáveis no dia-a-dia da preceptora do ambiente doméstico? E como moldar este “receptáculo materno” para receber a nova geração eugenicamente melhorada?
Assim temos a questão da patologização de desejos (ou falta de) femininos que foram alçados na condição de doenças, como a ninfomania na menopausa, práticas masturbatórias, anestesia sexual, histeria e prostituição. É importante frisar que todas as manifestações sexuais femininas que não estão contidas dentro do padrão moral e religioso na sociedade, mesmo que estes padrões sejam extremamente subjetivos, são encaixados no âmbito da patologia, ou seja, uma variação de comportamento fora dos limites judaico-cristãos é subvertida para o campo da doença.
Na menopausa, quando a mulher se torna inútil para exercer o papel que lhe cabe na vida sexual – a procriação – e que provavelmente os filhos já estão crescidos, a busca por uma maior liberdade sexual, por um quebra de inibição, pode ser interpretada como uma patologia, pois esta busca por uma vida sexual mais ativa. Esse aumento do apetite sexual foi denominado de Loucura Lúcida, já que não há modificação psicológica/ psiquiátrica da mulher. Interessante ressaltar que tanto o excesso de apetite sexual quando a ausência do desejo, chamado de anestesia sexual, é identificada como patologia, sendo que não há qualquer critério científico para determinação da doença, apenas critérios baseados na visão judaico-cristã do que seria uma mulher “normal”.
Sobre a prática masturbatória, esta é considerada como a mais potente para a debilitação progressiva da raça. Na Bíblia, esta prática não é explicita mas é combatida pois o prazer deve ser obtido entre homem e mulher. “a mulher não tem poder sobre o seu próprio corpo, e sim o marido; e também, semelhantemente, o marido não tem poder sobre o seu próprio corpo, e sim a mulher” (1 Coríntios 7:4). Mas mais uma vez a questão da masturbação possui “dois pesos e duas medidas”, pois “Este vício é mais vulgar no homem do que na mulher, o que é facilmente explicável pela superioridade de suas exigências sexuais. Comparando, porém, o grau de perversidade, segundo o sexo, afigura-se que a mulher viciosa será, em igualdade de circunstâncias, mais pervertida que o homem.”(TOLEDO; VIMIEIRO, 2018)
A histeria, que era ligada à superexcitação uterina até o século XIX, transformaria a mulher normal em uma pessoa “lasciva e erótica, completamente dominada por sua sexualidade”. Sua existência ameaçava a natureza feminina, conduzindo-a à irresponsabilidade se não fosse protegida por seu marido e o ambiente matrimonial. Egas Moniz descreve a mulher “nervosa” como a forma do negativo da imagem da mãe, pois há o descontrole do ambiente por parte da preceptora.
E a saída para todas estas patologias era o casamento, a couraça blindada de intimidade onde todas (ou a maior parte) das mulheres entrariam na normalidade. Na realidade, há de se convir que esta “entrada para a normalidade” acoberta vários tipos de violência contra a mulher, mas que para a sociedade era a melhor forma de promover o projeto de nação saudável.
Bibliografia:
BIROLI, F.; MIGUEL, L. F. Gênero, Raça, Classe: Dominações Cruzadas e Convergências na Reprodução das Desigualdades. Mediações – Revista de Ciências Sociais, [S. l.], v. 20, p. 27–55, 2015.
DOUGLAS, M. Pureza e Perigo. Campinas: Editora Perspectiva, 2010(debates).
GOULD, S. J. A falsa medida do homem. São Paulo: Martins Fontes, 1991.
KOUTSOUKOS, S. S. M. Zoológicos Humanos: gente em exibição na era do imperialismo. Campinas: Editora Unicamp, 2020.
LACERDA, J. B. de. O Congresso Universal das Raças reunido em Londres (1911) : apreciação e commentarios. Brasil: Papelaria Macedo, 1911. Disponível em: http://bdor.sibi.ufrj.br/handle/doc/16.
NOTT, J. C.; GLIDDON, G. R. Types of Mankind: Or, Ethnological Researches, Based Upon the Ancient Monuments, Paintings, Sculptures, and Crania of Races, and Upon Their Natural, Geographical, Philological and Biblical History. Philadelphia: Lippincott, Grambo & Company, 1855.
SOUZA, V. S. A eugenia brasileira e suas conexões internacionais: uma análise a partir das controvérsias entre Renato Kehl e Edgard Roquette-Pinto, 1920-1930. História, Ciências, Saúde – Manguinhos, [S. l.], v. 23, n. supl., p. 93–110, dez. 2016.
STEPAN, N. L. “A hora da eugenia” raça, gênero e nação na América Latina. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 2005(Coleção História e Saúde).
TOLEDO, E. T.; VIMIEIRO, A. C. A Vida Sexual, de Egas Moniz: eugenia, psicanálise e a patologizaçao do corpo sexuado feminino. História, Ciências, Saúde – Manguinhos, [S. l.], v. 25, n. supl, p. 69–86, ago. 2018.
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