No século XIX, várias expedições científicas atravessaram o Brasil, sendo seus caminhos registrados visualmente pelos chamados artistas viajantes. Até o início do séc XX, esta era forma de registro comum não só das expedições como dos relatos da vida cotidiana do povo brasileiro. Pintores como Rugendas, Taunay, Debret pintavam a nossa sociedade, e por estas obras o Brasil foi conhecido.
Uma mudança radical ocorreu durante os projetos das Expedições Científicas do Instituto Oswaldo Cruz (IOC) capitaneadas por Carlos Chagas. Durante estas expedições ao interior do Brasil no período de 1911 a 1913, os cientistas participantes tinham seus registros visuais feitos por fotógrafos e não mais por artistas viajantes. Diante deste cenário, este ensaio tem por objetivo elaborar possíveis causas para a mudança na técnica de registros visuais.
A expedição Langsdorff de reconhecimento do Brasil
Em 1821, com o apoio do czar russo Alexandre I e das autoridades brasileiras, o cônsul da Rússia no Brasil Georg Heinrich von Langsdorff, que também era um naturalista, iniciou uma expedição de reconhecimento das terras brasileiras. Para esta expedição, que teve a duração de 8 anos, Langsdorff foi acompanhado de artistas, botânicos, naturalistas e cientistas, em uma extensão que abrangia do Rio de Janeiro até o Pará. O objetivo desta expedição era “descobertas científicas, pesquisas geográficas, estatísticas e outras, estudo dos produtos ainda pouco conhecidos no comércio, coleções de todos os reinos da natureza que eu possa coletar e que possa concorrer para o enriquecimento das atuais coleções do Império” (1).
Nestas expedições existia a função dos artistas viajantes, artistas naturalistas que retratavam as paisagens e cenas do cotidiano de nossa cultura. Segundo a definição de MATTOS (2007):
“o conceito encerra a idéia de um registro objetivo da natureza pitoresca dos trópicos. Ao abordarmos as produções desses artistas, portanto, tendemos a tratá-la antes de tudo como documento, pensando-as fora do contexto da história da arte, isto é, sem levar em conta o seu estatuto de imagem (exatamente esse efeito, como vimos, é próprio à posição do conceito de “viajante” com relação à história da arte tradicional). Indício desse tratamento é a tendência a não discriminar a produção de “artistas viajantes” daquela de outros “viajantes”, naturalistas, militares, diletantes, etc.”
Os três artistas da expedição foram Johann Moritz Rugendas, Aimé-Adrien Taunay e Hercules Florence. Estes artistas pintavam o exotismo da paisagem, da fauna e flora e retratavam os costumes de acordo com o estilo da época. Estes artistas tinham como objetivo “pintar a realidade brasileira”.
A República e o novo olhar sobre o Brasil
Após a Proclamação da República (1889), uma nova ordem social se fazia presente. Sob as ordens do Marechal Floriano, nacionalista, o país deveria se modernizar pelo modelo europeu, através do progresso da ciência, arquitetura e urbanismo. A opção pelo federalismo na Carta Republicana de 1891 forneceu subsídios para que as discrepâncias sócioeconômicas entre o norte/nordeste e o sudeste ficassem cada vez maiores. A república do “Café com Leite” se fortalecia cada vez mais e o nordeste, mais se distanciava do modo de vida da capital.
Autores como Euclides da Cunha e sua magnífica obra Os Sertões (1902) constroem ambiências e personagens envolvidas no cotidiano de misérias, ignorância e doença (THIELEN, 1991). Qual a realidade do Brasil? O norte/nordeste retratado pelos artistas viajantes, ou o retratado por Euclides da Cunha?
As Expedições Científicas do IOC e o conhecimento do Brasil
Em 1900 foi criado no Rio de Janeiro, na esfera municipal, o Instituto Soreterápico (IS), com a finalidade de produzir vacinas contra a peste bubônica, que havia aparecido no Porto de Santos. Em 1903 Oswaldo Cruz consegue aumentar o perímetro de ação do IS abrangendo as demais doenças epidêmicas e a febre amarela. Ao longo de 1907 o IS trava uma batalha vigorosa contra o Congresso Nacional, onde as oligarquias não queriam que o instituto açambarcasse as áreas de patologia, higiene e sanitarismo, o que ocorreu em 1908 e mais tarde se tornasse finalmente o Instituto Oswaldo Cruz. A partir deste momento, são programadas expedições científicas para o levantamento da realidade sócio-econômica do povo brasileiro. Diferente das expedições anteriores, o IOC não levava em seu time de cientistas a figura de um artista viajante, que foi substituído por um fotógrafo.
“É preciso retratar o Brasil. Retratar e não pintar. Na pintura o artista coloca suas ilusões, acentuando as cores de sua predileção, dá vazão à imaginação. O retrato é o espelho fiel da realidade. Realidade que tantos não desejam ver. Sem este retrato, povoado de ‘imagens tristes’ e de ‘verdades duras’, continuar-se-á sem conhecer o Brasil. Já possuímos lentes para a fotografia. Euclides da Cunha, Oliveira Vianna, Plínio Salgado, Capistrano de Abreu, Paulo Prado revelaram o Brasil. O que foi revelado em nada justifica o lirismo de Por que me ufano do meu país. Ao contrário, a fraqueza e a mediocridade em muito ultrapassam as coisas a se ufanar.” (grifo negrito nosso)
Com este espírito de modernidade, as expedições partem com o propósito de registrar o modo de vida, da organização do trabalho, das condições de higiene do Brasil “verdadeiro”. São retratadas as doenças, a condições de moradia e de (não) saneamento. Um contraponto é feito com pinturas de quase um século atrás. Nossa realidade está longe de ser o retratado pelos artistas viajantes e sua visão do exótico, do bucólico. A dor, o sofrimento, a pobreza estão cruamente refletidos nas lentes dos cientistas.
Paisagens e janelas. O que queremos ver?
Embora o acervo fotográfico da expedição do IOC reflita uma cientificidade no propósito, podemos questionar se vivemos em um mundo binário, preto/branco. Certamente o IOC demonstrou toda a problemática do Brasil fora do eixo RJ-SP-MG, mas será que é só isso? Será que as expedições não se utilizaram da fotografia para provar seu ponto de vista, seus interesses?
‘Pela janela, vejo, portanto, algo da Natureza, extraído da natureza, recortado em seu domínio. A paisagem é justamente a apresentação culturalmente instituída dessa natureza que me envolve.” (CAUQUELIN, 2000)
Vemos a realidade que queremos ver. Segundo Cauquelin, a janela cultural pelo qual olhamos determina a nossa forma de ver o exterior:
“Este funesto parasita da terra é o CABOCLO, espécie de homem baldio, seminômade, inadaptável à civilização…” (Monteiro Lobato)
A expedição de Langsdorff quis mostrar a janela de um Novo Mundo, exótico, de belas paisagens, flora e fauna exuberantes e uma relação “amistosa” entre raças. Se não amistosa, no mínimo aceitável, afinal a escravidão não existia mais na Europa. Criou-se o mito do “bom selvagem”, do escravo resiliente da sua condição, a população do interior dada a folguedos e indolência. Não podemos nos esquecer que a intenção era descobrir novos produtos para o comércio.
“Eu ignorava que eras assim, meu caro Jeca, por motivo de doenças tremendas. Está provado que tens no sangue e nas tripas todo um jardim zoológico da pior espécie. É essa bicharia cruel que te faz papudo, feio, molenga, inerte.” (Monteiro Lobato)
Em contrapartida, o cientificismo do IOC queria mostrar as chagas abertas de uma sociedade que não condizia com a visão européia e de progresso da região sudeste. No mesmo período que Oswaldo Cruz desenhava e mandava construir o Castelo Mourisco, seus cientistas fotografavam e estudavam as doenças no interior do país.
Comparação Imagética
Irei expor imagens das duas expedições representando o mesmo tema para que possamos fazer uma comparação imagética entre a visão dos artistas viajantes e dos fotógrafos do IOC.
(1) Catálogo da expedição Langsdorff CCBB, pg 18
Bibliografia:
AGUILAR,N. Mostra do redescobrimento, o olhar distante. Fundação Bienal de São Paulo, São Paulo. 208p. 2000.
CAUQUELIN. A. A Invenção da Paisagem. Ed. Martins Fontes, São Paulo. 196p. 2000.
CCBB(org.). Catálogo da Expedição Langsdorff. Centro Cultural Banco do Brasil. 250p. 2010.
MATTOS, C.V. Artistas viajantes nas fronteiras da história da arte. III Encontro de História da Arte – IFCH / UNICAMP. 409 a 417. 2007.
PALMA, A. Monteiro Lobato e a origem do Jeca Tatu. Acessado 13/12/2017 em: <http://www.invivo.fiocruz.br/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoid=1035&sid=7>
THIELEN et alli. A Ciência a caminho da roça: imagens das expedições científicas do Instituto Oswaldo Cruz ao interior do Brasil entre 1911 e 1913. FIOCRUZ – Casa de Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro. 1991 154p.