O Doce de Leite de Vermeer

Nesta chuva torrencial que cai sobre o Rio de Janeiro, penso no que gostaria de estar saboreando enquanto ouço o som maravilhoso da chuva caindo.

O resultado de um processo feito para que, em um período sem tecnologias ou rotas de escoamente de produção, se associava o açúcar para um tempo maior de conservação, culminou no maior doce já feito pelo homem (sim, sou exagerada!). Isso porque não são apenas os sentidos que estão sendo despertos. É a memória do tempo que se vai a décadas.

Minha memória afetiva me remete ao doce de leite. Quando eu estudava em Minas, no refeitório da UFV era muito comum servir doce de leite na sobremesa. A comida era horrível (me diz um badejão universitário gourmet?) mas quando chegava no momento da sobremesa eu saboreava cada colherada daquela invenção dos deuses.

O doce de leite Viçosa, que era servido a nós simples mortais, tinha o sabor de que “amanhã vai ser melhor”. Parecia mesmo que o leite era manipulado da própria leiteira de Vermeer

E não estou poetizando não. O doce de leite Viçosa, que é da Fundação Arthur Bernandes, e produzida academicamente na Laticínio-Escola da engenharia de alimentos da UFV, é a maior vencedora da categoria, com a marca de 10 prêmios de 1o lugar no Concurso Nacional de Produtos Lácteos

(A leiteira, Johannes Vermeer, cerca de 1660 d.C. – Rijksmuseum)

Aquele doce de leite que não se sente um arranhadinho sequer no céu da boca. Dos deuses.

Amo tanto este doce que cada vez que vem uma visita de Viçosa aqui em casa, o pedágio é o doce de leite. Desta vez em janeiro, a visita trouxe uma coleção para eu experimentar – o que fiz com todo o prazer – mas não há igual!

O doce de leite Viçosa não é apenas um doce premiado. Ele carrega em si anos de displicência estudantil, de saias rodadas de tye-dye e a certeza de que mudaríamos o mundo.

Minha geração pode não ter mudado o mundo, mas agora, sentada na varanda vendo a chuva cair, eu tenho certeza que fiz a minha parte.

De Medusa só me interessa o monstro

Medusa era uma jovem linda, filha de Fórcis e Ceto. Seu pecado era gostar de se cuidar. Além da beleza,que já nascera com ela, o cuidado consigo mesma era algo que a fazia mais radiante.

Medusa era vaidosa, mas mesmo assim, a jovem era a sacerdotisa virgem e fiel de sua deusa Atena. Apesar de todos os cuidados com pele, cabelo e das roupas mais ousadas, Medusa nunca deixou de seguir o princípio da castidade de Atena.

Mas nesse mundo mitológico nada é perfeito e os defeitos humanos habitam em todos os deuses. E assim os irmãos Poseidon e Atena iniciam uma guerra para decidir qual seria capital da Grécia.

Atena sai vitoriosa mas isso desperta uma fúria em seu irmão, que era um tanto quanto irracional.

(Reconstituição moderna do frontão oeste do Partenon. Museu da Acrópole de Atenas)

E para se vingar de sua irmã Atena, Poseidon, sem nenhum constrangimento, decidiu abusar sexualmente de uma das suas devotas mais fieis, a Medusa “que sofreu o funesto” segundo Hesíodo. Embora tivesse barbas brancas, Hesíodo em sua Teogonia o chama caprichosamente de Crina-preta.

Rapidamente a notícia que Medusa se deitara com Poseidon no macio prado entre flores de primavera se espalha entre todos. Embora a jovem sacerdotisa afirme angustiada que fora vítima de estupro, seria mais cômodo acreditar em um deus de barbas brancas do que em uma jovem bonita e vaidosa.

E não é de se espantar que a maioria das pessoas culpavam Medusa, dizendo que ela tinha se aproveitado da situação. Apesar disso, a fé da jovem não se abalou e ela continuou fiel a seus princípios e indo todos os dias ao templo da deusa.

Ao saber disso, Atena foi tirar satisfação com Medusa e a serva disse que havia sido vítima de um estupro. Se fosse qualquer outra serva sua, Atena havia acreditado e a defendido. Porém, como era Medusa, a deusa não se convenceu de suas explicações. Logo Medusa, tão bonita e vaidosa? A que se dedicava a tantos cuidados consigo mesma?

E por não acreditar – afinal era Medusa e não bastava sua fidelidade e sua dedicação para ter um voto de confiança – como castigo transformou sua aparência em um ser repugnante e seu belos cabelos em cobras, lançando a maldição que qualquer pessoa que olhasse para ela seria transformada em pedra, selando seu destino de solidão.

A partir deste momento, há um apagamento do passado de alegrias e de dor, de memórias e lembranças para que apenas o monstro sobreviva.

E esse monstro é um troféu, como todos aqueles que não pertencem ao status de normalidade.

Cabe a Perseu apenas a morte de Medusa. Perseu, um semideus, filho de um abuso em forma de ouro, só quer a vitória, pois um dia lhe disseram que tudo que ele quisesse ele poderia conquistar.

Para ele pouco importa quem é o monstro, ou se é um monstro, só lhe importa a vitória.

Medusa (1597) de Caravaggio

A vida de Medusa agora não vale nada, se ela é um monstro vivo, se torna um troféu de grande valor morta.

E quando Perseu a persegue e a encontra para matar, ele lhe diz assoviando: – “você é um monstro.”

E Medusa gargalha e lhe responde: “- melhor ser um monstro do que um deus arrogante”

A Morte de Medusa (1882) Edward Burne Jones