Enquanto estava pelo aplicativo, tudo fluiu bem. Procurei nas redes sociais como me comportar – incrível o que nos ensinam nas redes hoje em dia. Fotos com filtros, sorrisos eternos de uma felicidade que está por vir. Um tempo que não sei precisar. Minutos? Dias? Meses? Finalmente tomamos coragem e saímos para tomar um chopp. Ansiedade a mil. Será que a roupa está boa? Será que a aparência sem filtro vai ser aceita? Usei tantos filtros dos mais diversos aplicativos durante esses meses que não sei mais quem sou. Bom…já decidi! Vou com aquela roupa que você curtiu no app e me achou uma gata. E assim chegamos ao barzinho, ainda de dia, eu muito solar. A cada vírgula um chopp na intenção de me soltar, afinal estou tensa e quero conquistar você, que se apresentou forte e sensível ao mesmo tempo no app.
Após algum tempo de conversa e muitos chopps, tentei sempre me pronunciar ao seu favor, afinal a sua ex, que você viveu 18 anos entre idas e vindas, me pareceu uma megera! E você, cheio de amor no peito, carente de afeto, tão vítima de uma mulher tão cruel, pintada de preto e branco em meia hora, conquistou meu coração. Te conheço a duas horas pessoalmente, e sei que você é um anjo em terra – você me contou. Me arrisco a te dar nosso primeiro beijo e você corresponde tímido a essa represa que rompeu de amores a um avatar que agora tem corpo. – vamos sair daqui? (pergunta ele) – sim, vamos. – para onde? – você escolhe…
Alguém tem uma idéia do que com esta mulher na mesa ao lado da minha? Espero que ele realmente seja o príncipe, e não o algoz.
Medusa era uma jovem linda, filha de Fórcis e Ceto. Seu pecado era gostar de se cuidar. Além da beleza,que já nascera com ela, o cuidado consigo mesma era algo que a fazia mais radiante.
Medusa era vaidosa, mas mesmo assim, a jovem era a sacerdotisa virgem e fiel de sua deusa Atena. Apesar de todos os cuidados com pele, cabelo e das roupas mais ousadas, Medusa nunca deixou de seguir o princípio da castidade de Atena.
Mas nesse mundo mitológico nada é perfeito e os defeitos humanos habitam em todos os deuses. E assim os irmãos Poseidon e Atena iniciam uma guerra para decidir qual seria capital da Grécia.
Atena sai vitoriosa mas isso desperta uma fúria em seu irmão, que era um tanto quanto irracional.
(Reconstituição moderna do frontão oeste do Partenon. Museu da Acrópole de Atenas)
E para se vingar de sua irmã Atena, Poseidon, sem nenhum constrangimento, decidiu abusar sexualmente de uma das suas devotas mais fieis, a Medusa “que sofreu o funesto” segundo Hesíodo. Embora tivesse barbas brancas, Hesíodo em sua Teogonia o chama caprichosamente de Crina-preta.
Rapidamente a notícia que Medusa se deitara com Poseidon no macio prado entre flores de primavera se espalha entre todos. Embora a jovem sacerdotisa afirme angustiada que fora vítima de estupro, seria mais cômodo acreditar em um deus de barbas brancas do que em uma jovem bonita e vaidosa.
E não é de se espantar que a maioria das pessoas culpavam Medusa, dizendo que ela tinha se aproveitado da situação. Apesar disso, a fé da jovem não se abalou e ela continuou fiel a seus princípios e indo todos os dias ao templo da deusa.
Ao saber disso, Atena foi tirar satisfação com Medusa e a serva disse que havia sido vítima de um estupro. Se fosse qualquer outra serva sua, Atena havia acreditado e a defendido. Porém, como era Medusa, a deusa não se convenceu de suas explicações. Logo Medusa, tão bonita e vaidosa? A que se dedicava a tantos cuidados consigo mesma?
E por não acreditar – afinal era Medusa e não bastava sua fidelidade e sua dedicação para ter um voto de confiança – como castigo transformou sua aparência em um ser repugnante e seu belos cabelos em cobras, lançando a maldição que qualquer pessoa que olhasse para ela seria transformada em pedra, selando seu destino de solidão.
A partir deste momento, há um apagamento do passado de alegrias e de dor, de memórias e lembranças para que apenas o monstro sobreviva.
E esse monstro é um troféu, como todos aqueles que não pertencem ao status de normalidade.
Cabe a Perseu apenas a morte de Medusa. Perseu, um semideus, filho de um abuso em forma de ouro, só quer a vitória, pois um dia lhe disseram que tudo que ele quisesse ele poderia conquistar.
Para ele pouco importa quem é o monstro, ou se é um monstro, só lhe importa a vitória.
Medusa (1597) de Caravaggio
A vida de Medusa agora não vale nada, se ela é um monstro vivo, se torna um troféu de grande valor morta.
E quando Perseu a persegue e a encontra para matar, ele lhe diz assoviando: – “você é um monstro.”
E Medusa gargalha e lhe responde: “- melhor ser um monstro do que um deus arrogante”
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