As lágrimas do mundo, as lágrimas do meu mundo

Na varanda de casa, o barulho da chuva acalenta o vai-e-vem da rede, que de forma cadenciada embala meu corpo enquanto olho para as gotas que displicentemente caem pelas telhas.

Com a chuva intensa, a rua fica mais silenciosa ainda, permitindo que eu ouça meus próprios pensamentos.

E ele foi longe, em um lugar de lutas, um lugar e um tempo onde cada dia era forjado a ferro. O caminho de uma mulher que foi educada para lutar por condições iguais, em todos os aspectos. Meus pais sabiam o espírito que receberam em casa, e me ensinaram que lutar pelos meus direitos não tira o direito de ninguém, afinal, o direito à igualdade não é uma pizza, onde quanto maior a fatia do direito de um, menor a do outro.

Yerres, Efeito da Chuva – Gustav Caillebotte, 1875

O discurso da igualdade é como a gota de chuva que agora cai no meu jardim. Forte após o inicio, vai se enfraquencendo com o tempo, até se invisibilizar.

Muitos dizem que o discurso é agressivo, o que não é verdade. O discurso é assertivo, de quem sempre esbarra na barreira invisível de ser mulher.

O nosso “basta” é visto como nervoso, estresse, agressividade, histeria. E aquela pergunta sempre está no ar… será que ela está de TPM?

Mas se há algo que te afirmo, é que acima de todas as batalhas, todas as cicatrizes, a minha alma ainda busca a poesia que existe no mundo, que existe no outro. E assim termino este post me apresentando…

Aqui está minha vida – esta areia tão clara
com desenhos de andar dedicados ao vento.
Aqui está minha voz – esta concha vazia,
sombra de som curtindo o seu próprio lamento.
Aqui está minha dor – este coral quebrado,
sobrevivendo ao seu patético momento.
Aqui está minha herança – este mar solitário,
que de um lado era amor e, do outro, esquecimento
.

MEIRELES, C. Antologia Poética. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 2001.

(O Beijo – Gustave Klimt, 1907)

O Doce de Leite de Vermeer

Nesta chuva torrencial que cai sobre o Rio de Janeiro, penso no que gostaria de estar saboreando enquanto ouço o som maravilhoso da chuva caindo.

O resultado de um processo feito para que, em um período sem tecnologias ou rotas de escoamente de produção, se associava o açúcar para um tempo maior de conservação, culminou no maior doce já feito pelo homem (sim, sou exagerada!). Isso porque não são apenas os sentidos que estão sendo despertos. É a memória do tempo que se vai a décadas.

Minha memória afetiva me remete ao doce de leite. Quando eu estudava em Minas, no refeitório da UFV era muito comum servir doce de leite na sobremesa. A comida era horrível (me diz um badejão universitário gourmet?) mas quando chegava no momento da sobremesa eu saboreava cada colherada daquela invenção dos deuses.

O doce de leite Viçosa, que era servido a nós simples mortais, tinha o sabor de que “amanhã vai ser melhor”. Parecia mesmo que o leite era manipulado da própria leiteira de Vermeer

E não estou poetizando não. O doce de leite Viçosa, que é da Fundação Arthur Bernandes, e produzida academicamente na Laticínio-Escola da engenharia de alimentos da UFV, é a maior vencedora da categoria, com a marca de 10 prêmios de 1o lugar no Concurso Nacional de Produtos Lácteos

(A leiteira, Johannes Vermeer, cerca de 1660 d.C. – Rijksmuseum)

Aquele doce de leite que não se sente um arranhadinho sequer no céu da boca. Dos deuses.

Amo tanto este doce que cada vez que vem uma visita de Viçosa aqui em casa, o pedágio é o doce de leite. Desta vez em janeiro, a visita trouxe uma coleção para eu experimentar – o que fiz com todo o prazer – mas não há igual!

O doce de leite Viçosa não é apenas um doce premiado. Ele carrega em si anos de displicência estudantil, de saias rodadas de tye-dye e a certeza de que mudaríamos o mundo.

Minha geração pode não ter mudado o mundo, mas agora, sentada na varanda vendo a chuva cair, eu tenho certeza que fiz a minha parte.